Desejo ou Tentação

Quando, às primeiras horas da manhã, a voz atravessa a rua, e nos dá, por um último instante, a definição do silêncio, e nos traz aquele divino cheiro a rosmaninho, é aí que ficamos como se a porta do templo se abrisse com total permissão de entrada. É então que se ouve:

– E que tenho eu a ver com essa coisa da paralítica voltar a andar? Não acredito em milagres, já to disse. Levanto-me pela manhã, tomo o meu café, sinto que estou vivo e, por isso, dou graças a Deus. Chega?

É assim, como um murmúrio forte de vento, a voz áspera e ríspida de frei Bentes ao falar na sacristia com Ana Maria Pereira.

Imagina-se aquele olhar ensosso, o nariz achatado, as pontas do véu a tapar a boca, o rosto a mostrar um ar incrédulo e ela a pensar que o frei se deixara possuir por satanás. Era assim, simplesmente assim, na radicalização das palavras impensadas. Até nos gestos. Já o mesmo aconteceu, outrora, ao aconselhar o frei à excomunhão para Maria José, por esta ter confessado abortar com a cumplicidade de Angelo Passos.

– Este sacana que nunca eu o vi entrar numa igreja. – Dizia ela.

O frei Bentes emoldurava-se numa paciência de santo. Passeava por ali e atendia às confissões, queixumes e misérias dos paroquianos. Sorria, passava a palma da mão pelas cabeças pecadoras e dava palavras de tranquilidade e paz.

Contudo, Ana Maria Pereira irritava-o. Era chata, muito chata, a Ana Maria Pereira. E, não raro, a voz do frei Bentes ouvia-se no exterior da sacristia:

– E fica sabendo, criatura de Deus, que não devemos colocar o Senhor nesta dualidade: não é milagre quando um seu filho paralítico recupera o andar; como não é maldição quando um outro, por qualquer razão, perde o andar. E quanto à Maria José, que tens tu a ver com isso? Olha para a trave que tens no olho.

A rua amparava as palavras que o vento arrastava como folhas secas de plátano. E, ao entardecer, eram as aves, na adivinhação da sede, que ocupavam o seu desterro. Hábeis, seguravam-se na lentidão das águas. E o seu leito saciado num olhar de asa. O voo era perpendi­cular aos plátanos perfilados na rua de acesso à igreja por onde beatas vestidas de negro peregrinavam logo às primeiras horas da manhã.

Ana Maria Pereira parecia enlouquecer. Nessa tarde apeteceu­-lhe despir-se. Deitou-se ao comprido na cama com uma rosa branca entre os seios e desejou o seu João (o homem há uma data de anos no Canadá, sem lhe ligar patavina. A bem dizer, desapareceu) e, por instantes, adormeceu.

Depois levantou-se da cama, pousou muito devagar a rosa branca sobre a mesa da cabeceira, fixou o olhar no último raio de sol que atravessou o vidro, ouviu chamar, entreabriu a porta interior e atendeu:

– Que me quer?

O frei Bentes com a cabeça metida já no interior do postigo quando deu com os olhos na mulher estava para cair de espanto.

– Que estás a fazer, mulher?

Emudeceu. Por um momento, apetecia-lhe dizer que estava às ordens do seu João. E se estivesse, por um só momento ela estivesse às ordens do seu João, mas não, agora não. De súbito, olhou-se de cima a baixo, um rosto inocente, a tez do corpo que as vestes escuras sempre esconderam e descobriu em si traços atraentes de alguma beleza. Lembrou-se de frei Bentes. Afinal um padre, só porque é padre, não deixa de ser homem. Deu-lhe em convidar frei Bentes para entrar.

– Ó rapariga, tu enlouqueceste?

Estava nua. A polpa dos dedos caída sobre o sexo, a outra mão a afagar a mama esquerda. Ela perdera o sentido dos dias, das horas, do lugar, e deixara-se conduzir por um desmesurado desejo de oferecer o corpo ao frei Bentes e fornicar com ele até fazer doer as horas. Às vezes, perguntava-lhe baixinho:

– Ó mór, ainda acreditas em milagres?

A tarde oferecia uma maré de sol e o vento agitava ao de leve os ramos das árvores e varria pensamentos de Verão. E, no desenrolar dos lençóis, já os instantes se perdiam pelo quarto num odor a incenso.

E ela gritava:

– O frei deixou-se possuir por satanás!

As árvores projectavam sobre a rua um contorno de sombra. E, com o entardecer, um cheirinho à flor da tília. Era aí que as palavras e a voz desapareciam.

Do livro “Os dias Imprecisos” de Álvaro de Oliveira